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O dilema da negociação entre a estética e a função

Marcelo Calamita

Por onde devemos começar o planejamento das nossas reabilitações? Pela estética ou pela função? Existem defensores de ambas as ilosoias. Explicarei o meu ponto de vista: pela estética, ponto. Nessa concepção de planejamento, o design estético estabelecerá o objetivo inal idealizado para o tratamento, incorporando os desejos e as necessidades do paciente e dentista(s) envolvidos no caso. A estética não é, necessariamente, o mais importante, mas a pré-visualização do resultado desejado será responsável por direcionar o processo. O design estético inicial deve ser elaborado de modo a estabelecer parâmetros e propor soluções que restaurem, da forma mais plena possível, os problemas diagnosticados. Linhas guias desenhadas sobre imagens da face e dos dentes do paciente — à mão livre ou diretamente na tela do computador — facilitam e conferem precisão ao desenho. Softwares dos mais diversos podem auxiliar nessa tarefa1 e, quanto mais detalhado for o design, mais previsivelmente chegaremos ao resultado desejado. Ele até poderá não ser plenamente concretizado, mas estabelecerá, desde o princípio, o potencial estético para o caso, realçando e quantificando as discrepâncias presentes. Todo potencial estético traz consigo implicações clínicas e consequências, que podem ser múltiplas e variadas. Casos simples, como tratamentos dos dentes anteriores por alterações discretas de forma ou cor, podem não representar desafios. Escrevo “podem” porque mesmo nesse tipo de caso o diagnóstico deve ser completo, conhecendo-se os reais motivos para os dentes se apresentarem naquela situação. Avaliar os antagonistas, suas inclinações, alinhamento e presença de facetas de desgaste, entre outros fatores, nos dará boas pistas sobre a melhor forma de restabelecer uma harmonia anterior duradoura, pois bordas incisais não devem ser alongadas a esmo. Versando sobre o tema, Gurel et al.2 concluíram, em seu trabalho, que dentes alongados no sentido incisal com laminados cerâmicos apresentavam 2,3 vezes mais predisposição a falhas do que dentes em que o comprimento da borda incisal foi mantido. Algo como se estivéssemos colocando um obstáculo na trajetória funcional mandibular. Para casos complexos, é essencial que o design estético seja amplamente discutido por uma competente equipe interdisciplinar — com clínico, periodontista, endodontista, ortodontista, cirurgião, protesista e técnico em prótese dentária —, com todos apresentando seus pontos de vista sobre a exequibilidade e funcionalidade do design dentro de um plano de tratamento. Como em qualquer obra de construção civil, o projeto arquitetônico será submetido a uma equipe de especialistas em Engenharia, para avaliar de que modo poderá ser viabilizado. A equipe de construtores avaliará o tipo de terreno, possibilidade de abalos, intensidade dos ventos. Também calculará as fundações necessárias, com base nos esforços a que o projeto será submetido. A partir dessas medidas exatas, uma sólida construção poderá ser erguida, com segurança e tranquilidade. De forma similar, em Odontologia Estética, devemos prever todas as implicações de ordem biomecânica que o nosso projeto estético poderá gerar. Como um engenheiro calculista, devemos avaliar se a oclusão pode fazer aquele sistema funcionar eicientemente... e por mais tempo. Se o design estético proposto modiicar a distribuição de esforços, precisaremos veriicar o grau de inluência das relações intra-arcadas e interarcadas, ângulos de desoclusão e dimensão vertical — para o novo sistema funcionar de modo suave e estável —; e se serão necessários tratamentos adjuntos restauradores ou ortodônticos, para alinhar mais adequadamente os elementos-suporte, para que suportem tais esforços. Muitos dos pacientes que buscam tratamento o fazem não por problemas de ordem biológica, como cárie ou doença periodontal, mas desejam reparar dentes desgastados por processos de atrição, oriundos de bruxismo ou apertamento. É aqui que mora o perigo! Nesses pacientes, a intensidade, duração e direcionamento das forças presentes poderá levar à falha precoce do tratamento. Mais uma vez, a ciência comprova essa relação. Por exemplo, para laminados cerâmicos, a literatura mostra taxas de sobrevida extremamente altas, acima de 90% no período de 10 a 15 anos, quando não relacionadas à atividade parafuncional2 . Já em casos de laminados utilizados para o tratamento de dentes com sinais de atrição, de acordo com Walls3 , o índice de insucesso atinge 28%, em apenas 5 anos, com o aparecimento de lascas, fraturas, etc. É muito pouco! Não estou, aqui, querendo introduzir conceitos complicados em algo que poderia ser uma feliz oportunidade de prover um sorriso dos sonhos ao nosso paciente. Minha meta é lembrar que algumas alterações estéticas podem acarretar riscos funcionais a esse paciente, e que, infelizmente, até mesmo coisas belas podem não ser resistentes. Chamo isso de negociação entre estética e função: um eterno dilema clínico. Assim como em qualquer tipo de negociação, nem todos podem ganhar sempre. O objetivo é chegar o mais próximo possível do projeto estético idealizado, modulado pelas demandas funcionais e biomecânicas, estando o paciente conscientizado de que essas alterações foram baseadas em uma análise individual dos riscos, e visam à longevidade de suas restaurações. Assim, o projeto estético nos mostra o caminho a seguir, enquanto a análise funcional nos ensina os problemas a evitar. Para terminar, gostaria de transcrever uma frase, de um dos profissionais mais inteligentes do mundo da Odontologia, que resume todo esse editorial: “Em um mundo real, os clínicos devem negociar o tempo todo. Na verdade, a inteligência do clínico deveria ser medida por sua capacidade de gerenciar comprometimentos, com base em sua perícia, experiência clínica e capacidade de julgamento.” John Kois Aproveitando essa última edição do ano, desejamos, aos nossos queridos leitores, um Natal cheio de paz e harmonia, ao lado da família e de amigos, e um Ano Novo repleto de realizações. Se imaginarmos um lindo cenário, teremos grandes chances de transformá-lo em realidade! Puro planejamento. Um grande abraço e uma ótima leitura!

sábado, 23 de noviembre de 2024 09:23